sábado, dezembro 13, 2008

Falta mata-mata para se atingir o ukun-rasik an


Começa a contagem descendente, começa a compreensão do que só é captável pelo espírito, do que só é navegável pela metafísica, por uma hermenêutica mais íntima, profunda e mesmo mítica, como leio no trabalho de um aluno. Porque há Lel Mau-Tar, o Sol, o ente radiante, o juiz último cujos raios chegam a todo o cantinho da Terra, iluminando e desvendando, com minúcia, toda a verdade, e nada deixando oculto ou camuflado. Ai de quem não chegue a esta tradição oral mambae, que não assuma Maromak gia tsu. Só assim pode sentir-se a continuação do novo cancioneiro de Timor:

Rogamos às raízes
para que elas penetrem na terra,
aos botões para que ascendam aos céus,
...
àqueles que nos esconderijos e nos ermos
estarão sempre acompanhados,
a vossa busca
do que visa o progresso
tem de ir avante.

Confesso que me bastam meia dúzia de trabalhos de alunos com estas recolhas sobre a justiça e o político no pré-estadual do timorense, para me sentir um professor que aqui veio aprender, isto é, para me sentir verdadeiramente professor. E também para me reconhecer ineficaz, se ousasse bater à porta dos emissores globalizantes do rolo unidimensional do neocolonialismo, para que eles me ajudarem a lançar a resistência deste aceder ao universal pela diferença. Que lhes interessa que o ga'u vanu mi sirva para manter a harmonia entre a comunidade e a natureza, entre a comunidade e o ancestral no mundo inivisível. Interessa-lhes mais pentear macacos e traduzir em calão constituições que nem o pluralismo da autonomia dos Açores conseguem captar criativamente.

terça-feira, novembro 25, 2008

A passarada começa a chilrear depois da tempestade.Os galos despertam todos os quintais. As rolas, aqui e além, compõem a harmonia.


cordo, depois de muito trabalho e de poucas horas de sono, depois de meditada reflexão sobre exercícios de avaliação de alunos de uma bela licenciatura em direito, lançada pela cooperação da universidade portuguesa, com o esforço de muita gente, representada pelo Professor Doutor Pedro Bacelar de Vasconcelos. Fico feliz com os resultados do diálogo de culturas e de civilizações, com o comparativismo, com a análise complexa das situações de violência estrutural da colonização, da ocupação militar, do violento despertar da institucionalização dos conflitos pela via partidária, do lançamento do Estado de Direito... A esperança pode vir dos próprios desesperados. Converso nas arcadas da universidade com variados alunos, desde deputados da situação e da oposição, desde antigos candidatos a presidentes com actuais reitores e membros dos gabinestes ministerais, desde altos graduados das forças armadas a simples bombeiros, gente de todas as condições, de todas as línguas, de todas as formações, uns vindos de Lisboa, outros da Indonésia, outros da Austrália. Vale mais experimentá-lo do que julgá-lo, mas julguem-no todos os inspectores da cooperação e dos manuais de procedimentos que podem achar interessante umas férias no Hotel Timor, com saltos a Bali e às praias de Comoro. Hoje, em pleno desabar de uma forte chuvada tropical, viveu-se a inauguração da Casa da Europa, com o comissário Michel, bem como de alguns melhoramentos no hospital Guido Valadares. Barroso, aqui, deu, de certeza, o seu apoio. Nisto, não elaboro teorias, pratico e tento cumprir uma ideia que eu penso ser a de Portugal universal e pós-imperial, que é a que passa pelo abraço armilar da CPLP, aqui registado por Cinatti, Reis Thomaz, José Mattoso ou Rui Palma Carlos. Num ensinar e num aprender como em qualquer universidade do mundo, como as melhores onde já tenho feito exactamente o mesmo, da Clássica de Lisboa à Técnica também de Lisboa, da UNB de Brasília, à francesa de Estrasburgo. Leio e releio, o tal artigo-manifesto, tão bem construído por Pedro Rosa Mendes, assente numa opinião fundamentada, numa concepção coerente do mundo e da vida, escrito num tom de revolta que apenas expressa a angústia de alguém que ama esta ilha. É uma pedrada que pode despertar homens de boa vontade. Leio, infelizmente, imediatas reacções de puritanos analistas que vivem entre o tudo e o seu nada. Até sou capaz de prever que, dentro de dias, aí na metrópole, com reflexos condicionados neo-imperiais, haverá quem proponha o regresso do "white man's burden", super-demoliberal, à bela maneira da SDN, quando Kipling, o autor da frase, andava com os mesmos símbolos de Ramos Horta na camisa. Apenas conselho que passemos a uma fase superior de análise do problema timorense: vamos, como me escrevia um aluno que vou citar, ao âmago das coisas, vamos a uma abstracção mais elevada, mas que, ao mesmo tempo, sente os pés firmes na terra, na medida em que relacioan sempre o teórico com a prática concreta, ainda mais com a realidade que atravessamos e melhor ainda quando se dirige à conjuntura actual do nosso país. Até há por aí ex-maoístas como a Ana Gomes ou o Zé Manel Durão Barroso que bem precisam de dar uma ensabadoela de amor a Timor nalguns ocidentalizados mais à pressa da redacção de "O Grito do Povo". E há também uns padres e umas freirinhas aqui da ilha que têm de ir a Fátima para uma vela à divindade, para que fora da causa de Timor não fique um único Deus marginalizado... Para descanso de alguns editorialistas do ex-maoísmo, e agora fundamentalistas neoliberais, neo-utilitaristas e neoconservadores, os mesmos que, com esse gnosticismo vérmico, apoiaram Bush e a invasão do Iraque, seria melhor que não repetissem tretas que já ouvi, sobre esta metade de uma ilha, vindas fascistas folclóricos, cobardes e pica-subsídios, que apelavam ao desembarque de cortadores de cabeças, sem perceberem nada das almas de antepassados ou dos crocodilos que são avôs. Porque quase todos repetem o que disse Junot e o Maneta sobre os reaccionários e sebastianistas lusitanos dos começos do século XIX, ou os devoristas discursos parlamentares de Costa Cabral, a nossa tradução de Guizot em calão, sobre o povão da Patuleia e da Maria da Fonte, antes de Saldanha pedir a intervenção da comunidade internaciona,l para que se repusesse a civilização da Convenção do Gramido, isto é, os interesses de Espanha, da Grã-Bretanha e da França. Prefiro continuar a ler o Espectro e a refundar a Carbonária, contra o governador que vendeu parte destas ilhas à companhia de deve e haver lá dos Países Baixos. Julgo que, nestes domínios de timorologia, a história demoliberal portuguesa pouco deixou de orgulhosamente recordável cá pelo sol nascente, desde o tal governador que vendeu parte do estabelecimento, para cobertura do défice orçamental, ao abandono insolente e ignorante, concluído com a retirada para Ataúro, quando a tropa era um departamento de bombeiros incendiários, brincando a revoluções, guerra fria e "gritos do povo" sobre um nem mais um soldado para as colónias, para que morram apenas os coloniais, nestes jogos de guerra que aqui vamos propagar, para gozo de Pequim, Moscovo e Washington. Mesmo em demoliberalismos esotéricos, apenas se detecta uma loja Oceania, lá nos tempos da I República, um regime que aqui teve como principal governador Filomeno da Câmara, o dos fifis do pós-28 de Maio. Fica, contudo, de forma paradoxal, uma ideia de resistência contra os japoneses, com deportados anarquistas, tipo Carrascalão, e republicanos, tipo Cal Brandão ou tenente Pires, quando as tais sociedades secretas eram heróicas pela liberdade e correctas com a pátria, a quem cederam os simbolos da soberania no fim da guerra. Como leio num trabalho de um aluno: se perguntarmos à maioria dos timorenses dos distritos... que resistiu á invasão indonésia, porque hoje estamos independentes, as pessoas irão certamente atribuir o facto a Deus, aos ancestrais, aos nossos dirigentes e aos chefes tradicionais ou ainda à Natureza, como afirma a maioria dos guerrilheiros sobreviventes dos 24 anos de resistência nas matas de Timor-Leste. E isto é uma prova da existência de uma cultura, de uma comunidade regida por um direito consuetudinário que, ao longo dos séculos, sempre conduziu este povo até à sua libertação final do jugo colonial e tornar-se uma país independente. E vai chegando a madrugada. A passarada começa a chilrear depois da tempestade. As pequenas osgas alegram-se no toke, toke. Os galos despertam todos os quintais. As rolas, aqui e além, compõem a harmonia. Um povo que quer ter direito a ser povo vai despertando para mais um dia de luta. Um povo que quer ser nação, unir-se em torno de uma comunhão pelas coisas que se amam, e pelas quais dezenas, centenas, milhares, centenas de meilhares deram a vida. Leio trabalho de um desses alunos: em Timor-Leste, particularmente nas áreas remotas, ainda reina o sincretismo, não sendo fácil às pessoas distinguirem os princípios de Direito dos da Religião, da moral e do costume. Enquanto em Dili as pessoas se viram cada vez mais para o profano, procurando por todos os meios assimilar conhecimentos dos quais pensam poder dominar a natureza, nas montanhas as pessoas preocupam-se mais com as necessidades imediatas e, quando muito, as de médio prazo, passando os dias e, principalmente, as noites a admirar a natureza, a tentar perceber a saa concatenação com a alma dos ancestrais,e com uma lisan e uma lulik. A sua maior preocupação é o estabelecimento de uma harmonia espiritual, física e mesmo material com a Natureza, pois sabe e está convicto de que nós somos apnas uma ínfima parte do Cosmos.

quinta-feira, novembro 13, 2008

Abolição do Estado

Bakunine assume um programa de abolição do Estado, propondo o triunfo da igualdade económica e social. Defende a ideia de sociedade natural contra a política, entendendo aquela como uma sociedade espontânea. O Estado é entendido como um imenso cemitério onde se sacrificam, morrem e enterram todas as manifestações da vida individual e local, todos os interesses das partes cujo conjunto constitui a sociedade. Quem diz Estado, diz necessariamente dominação  e, por conseguinte, escravatura; um Estado sem escravatura, declarada ou disfarçada,é inconcebível, eis porque somos inimigos do Estado". Para Bakunine o estatismo é "todo o sistema que consiste em governar a sociedade de cima para baixo em nome de um pretendido direito teológico ou metafísico, divino ou cientifico", enquanto a anarquia é "a organização livre e autónoma de todas as unidades ou partes separadas que compõem as comunas e a sua livre federação, fundada de baixo para cima, não sobre a injunção de qualquer autoridade, mesmo que eleita, ou que sobre as formulações de uma sábia teoria, seja ela qual for, mas em consequência do desenvolvimento natural das necessidades de todas as espécies que a própria vida gera". Propõe a eliminação do direito jurídico pela instauração de um direito humano, o único verdadeiro direito que é o respeito da dignidade pessoal universalmente reflectida

segunda-feira, outubro 18, 2004

Balança do poder, o que é?

Do lat. bilance, isto é, bi (dual) + lanx, lancis (prato), o que tem dois pratos. Terá entrado na língua portuguesa pelo castelhano balanza. A imagem tanto é utilizada na linguagem das relações internacionais, enquanto balance of power policy, a atitude que tenta evitar que um qualquer Estado tenha demasiados poderes no contexto do sistema da política internacional, como no âmbito interno de cada Estado, balance of power, enquanto a distribuição doméstica do poder pelas várias instituições estaduais.
A expressão no tocante às relações internacionais foi consagrada para caracterizar a política do rei inglês Henrique VIII que perante os dois pratos das balança da política europeia de então, as potências da Espanha e da França, tentou assumir-se como um terceiro desequilibrados e, consequentemente, como o fiel da balança.
Diz-se hoje da ideia segundo a qual importa evitar que uma só potência, tanto a nível mundial, como no tocante a uma determinada zona geográfica tenha demasiados poderes militares que lhe permitam dominar os outros Estados. Os britânicos voltaram a usar o termo no século XIX visando evitar o sistema napoleónico, onde a hegemonia solitária da França apenas foi derrubada através de uma coligação negativa de todas as outras potências, passando a ser comum o uso da expressão balança da Europa, conforme o título de uma obra do nosso Almeida Garrett, publicada em Londres no ano de 1830. Neste sentido, a diplomacia britânica considerou que as alianças não são uma questão de ideologia, mas antes uma exigência do pragmatismo no sentido do equilíbrio dos poderes capaz de evitar o surgimento de uma potência hegemónica. Depois da Segunda Guerra Mundial passou a falar-se numa balança de terror. Mas o pragmatismo continuou, desde a política soviética dos anos oitenta, quando apoiou o Iraque na sua luta contra o Irão, à política norte-americana que admitiu um Vietname forte para contrabalançar a hegemonia da China na região do Sudoeste asiático.
A balança do poder no plano doméstico começou por identificar-se com o regime misto, conforme Políbio qualificou o sistema de equilíbrio de poderes da República Romana, teorizado por Cícero e, depois, assumido por S. Tomás de Aquino. Diz-se da teoria da divisão de poderes de Montesquieu, é marcada tanto por uma ideia de separação como por uma ideia de equilíbrio, através do sistema dito de checks and balance, um sistema de pesos e contrapesos. Daí que visione dois poderes, uma função e três forças sociais (o rei, a câmara aristocrática e a câmara popular). O poder legislativo é exercido por dois corpos (dos nobres e do povo). O executivo tem direito de veto sobre o legislativo. Porque o poder deve travar o poder. Aliás, no interior de cada poder, para além de uma faculdade de estatuer, o direito de ordenar ou de corrigir aquilo que foi ordenado por outro, existe a faculdade de vetar, o direito de tornar nula uma resolução tomada por outro poder. Já o chamado poder judicial não é visto como um verdadeiro poder, mas antes como uma função. Antes de Montesquieu, David Hume escreveu um ensaio sobre a matéria. Maurice Hauriou retoma esta perspectiva quando afirma a tríade poder, liberdade, ordem.
Foi consagrada pela teorização política renascentista, constituindo um modelo híbrido, pelo que as qualificações que o mesmo tem recebido rondam também o contraditório. Para uns, teria havido um absolutismo com limites, um absolutismo temperado pelos teólogos, uma visão teológica do poder. Como dizia Tierno Galván era um absolutismo tradicional de remota base popular y eticidad plena. Um absolutismo moderado, ainda não totalmente liberto das vinculações que o jusnaturalismo impunha ao poder soberano. Já J. Vicens Vives chama-lhe monarquia autoritária, considerando, no entanto, que o vocábulo exacto seria monarquia preeminencial

Apatia, o que é?

Estado de indiferença ou de falta de interesse face ao processo de participação política. A atitude é favorecida nos regimes autoritários, como o salazarista, onde se considerava que quem não estava contra, era a favor da situação, ao contrário dos modelos autoritários, onde quem não se manifesta a favor da situação pode ser considerado opositor.

domingo, outubro 17, 2004

Rede de poderes, o que é?

Segundo Michel Foucault, há uma rede de micropoderes, de poderes centrífugos, locais, familiares e regionais, com uma variedade de conflitos, dotados de articulações horizontais, mas onde também surge uma articulação vertical, uma integração institucional dos poderes múltiplos tendente para um centro político, para um poder centrípeto. A sua teoria dos micropoderes, esboçada em L'Archéologie du Savoir, 1969, alcançou estruturação na obra Surveiller et Punir, de 1975. Entre esses vários micropoderes, importa salientar os chamados poderes difusos que actuam pela persuasão e pela sedução. É o caso do poder dos meios de comunicação social, dos mass media, dos suportes da difusão da comunicação, como é a imprensa, o rádio e a televisão, a quem têm chamado o quarto poder. Mas actividade de todos estes grupos não se processa no vazio, mas antes dentro de um quadro estrutural e de acordo com certas regras do jogo.
Há, com efeito, uma estrutura de rede (network structure), uma relação de relações, uma rede de micropoderes, um macrocosmos de macrocosmos sociais. Há um poder político, um campo concentrado, uma governação que trata de coordenar o processo de ajustamento entre os grupos, procurando um ponto de equilíbrio entre as tensões.
Neste sentido, o Estado é perspectivado, não como uma coisa, mas como um processo relacional, entre a sociedade civil, ou comunidade, e o aparelho de poder, como o mero quadro estrutural de um jogo entre forças centrífugas e centrípetas, toda uma miríade de poderes periféricos, não necessariamente hierarquizáveis como corpos intermediários, que se justaporiam, de forma complexa, pelo que a soberania, na prática, seria divisível e, sobre o mesmo espaço e as mesmas pessoas, não teria que haver o centralismo e o concentracionarismo de uma única governação.
O político é uma invenção marcada por uma estratégia que globaliza várias micro-estratégias, onde há uma especial forma de poder, o poder político, a síntese emergente, integrante de vários micropoderes, onde uma multiplicidade de actores actua numa determinada unidade, em quadros estruturais, em circuitos institucionalizados.

Moda, o que é?

A moda é uma das ordens normativas da realidade que provoca o império do efémero, conforme a expressão de Lipovetsky. Traduz-se na emissão de sinais distintivos de um determinado grupo dominante, mas estes logo são imitados pelos restantes numa correria. Uma das formas de moda está no intelectualismo do politically correct e nos modelos do radical chic.
Segundo Radbruch, outra coisa não é senão um esforço das camadas superiores da sociedade para se diferenciarem, por meio de certos caracteres e sinais exteriores, das camadas julgadas inferiores. A moda alimenta-se, por assim dizer, precisamente, dessa permanente e porfiada concorrência entre as duas camadas, que leva a superior a modificar constantemente os sinais da sua maior dignidade, desde que a inferior se apropria deles. Neste sentido, como referia Jean Anouhil, só é moda aquilo que passa de moda.

Sistema político, o que é?

Com efeito, um sistema político, segundo as teses de David Easton e Karl Deutsch, enquanto processo de interacção que visa uma atribuição autoritária de valores, tem sido visto como uma unidade inserida num ambiente, donde, por um lado, recebe entradas (inputs) – os apoios às exigências que se articulam, agregam e manifestam pela acção de grupos de interesse, grupos de pressão, movimentos políticos e partidos políticos – e, para onde, por outro, deve emitir saídas (outputs). Para que entre o ambiente e o sistema se gere um fluxo contínuo que permita ao sistema ser um sistema aberto e evolutivo, mantendo embora a respectiva autonomia.
Seguindo agora Almond e Powell, podemos dizer que os produtos do sistema político, as decisões políticas, não se reduzem às clássicas funções estaduais (o fazer regras do poder legislativo ou rule making, o executar programas do governar ou rule application, e o aplicar regras em situações contenciosas do rule adjudication ou poder judicial), dado que há um outro campo de produção de tal sistema, a comunicação política, a troca de informação entre governantes e governados, bem como a própria troca de informação horizontal entre os governados.
Por outras palavras, a função de comunicação política é, ela própria, tanto um produto nitidamente político, como o sangue irrigador dos canais nevrálgicos do próprio interior do sistema político. Com efeito, a troca de informação, constitui o fluído através do qual se procede à irrigação do sistema estadual de nervos (the nerves of government, segundo a expressão de Karl Deutsch), sendo, por isso, o elemento fundamental do sistema político.
A questão da informação, da circulação da informação e do controlo da informação, é assim a questão fundamental do sistema político. Aliás, governar é proceder à retroacção da informação. É converter os inputs em outputs, converter os apoios e as exigências em decisões políticas.
É pela informação, pelos sensores dos centros de recepção de dados, que o sistema político contacta com o respectivo ambiente, com os outros subsistemas sociais e com os outros sistemas políticos.
É pela operação de processamento de dados, confrontando mensagens do presente com informações arquivadas no centro da memória e dos valores, que o sistema político pode, ou não, adquirir autonomia e identidade.
É depois, no estado-maior da consciência, onde se selecciona a informação presente e passada e se confronta este conjunto com as metas programáticas, que o sistema político prepara a pilotagem do futuro em que se traduz a governação.
Tem isto a ver com os chamados meios de comunicação social que não são sociedade sem política, não são comunidade sem poder. Todos os meios de comunicação social são meios de comunicação política. Eles estão, aliás, no centro da política. São uma das principais bases da política, mesmo que a respectiva titularidade seja privada.
Com efeito, o processo político, o processo de conquista do poder, se adoptarmos uma perspectiva da poliarquia pluralista, consiste num processo de conquista da adesão do governado.
O processo político não se reduz à luta pelo poder supremo ou à conquista do poder de sufrágio, dado ser global e desenrola-se em todo o espaço societário.
O poder político não é uma coisa, é uma relação. Uma relação entre a república e o principado, entre a comunidade e o aparelho de poder e destes com um determinado sistema de valores.
Tal como o Estado, enquanto quadro estrutural de exercício do poder, porque essa estrutura de rede (network structure), ou espaço de regras do jogo e de enquadramento institucional do processo de ajustamento e de confronto entre os grupos, não é também uma coisa, mas antes um processo.
O poder político é, conforme a clássica definição de Max Weber, uma estrutura complexa de práticas materiais e simbólicas destinadas à produção do consenso. Isto é, o poder político, ao contrário das restantes formas de poder social, implica que haja uma relação entre governantes e governados, onde o governante exerce um poder-dever e o que obedece, obedece porque reconhece o governante pela legitimidade deste.
Assim, o espaço normal do processo político é o da persuasão. O da utilização da palavra para a comunicação da mensagem e a consequente obtenção da adesão, enquanto consenso e não unanimidade, onde há obediência pelo consentimento, onde o poder equivale à negociação.
Só quando falha este processo normal de adesão comunicativa é que o governante trata de utilizar a persuasão com autoridade, com o falar como autor para auditores, onde o autor está situado num nível superior e o auditor no nível inferior da audiência. Com efeito, o emissor da palavra não está no mesmo plano do receptor, está num lugar mais alto, aquele onde se acumula o poder.
Num terceiro passo vem a astúcia, o ser raposa para conhecer os fios da trama, esse olhar de coruja, que nos tenta convencer, actuando na face invisível do poder, nomeadamente para enganar o outro quanto à identificação dos seus próprios interesses, ou criando, para esse outro, interesses artificiais. Isto é, quando falha a comunicação pela palavra, mesmo que reforçada pela autoridade, vem o engodo, a utilização da ideologia, da propaganda ou do controlo da informação. O que pode passar pelo controlo do programa de debates, com limitação da discussão ou evitando o completo esclarecimento dos interesses das partes em confronto.
Só como ultima ratio se utiliza a força – física ou psicológica, o uso efectivo da mesma ou a ameaça da respectiva utilização – para obter o consentimento; para forçar à obediência independentemente do consentimento. É então que o poder passa a voar como falcão, a ser leão para meter medo aos lobos, não se eximindo a combater pelas armas.
De qualquer maneira, a distribuição dos valores e dos recursos políticos é sempre feita com autoridade, há sempre instituições que distribuem os mesmos valores e recursos, de cima para baixo, há sempre allocation (David Easton), um processo funcional pelo qual um sistema atribui, abona ou distribui os objectos que valoriza (Badie e Gerstlé). Mas só tem autoridade aquele emissor ou distribuidos a quem o receptor atribui legitimidade, essa perspectiva do poder tomada do lado daqueles que obedecem, aquilo que suscita o consentimento, onde a autoridade é a perspectiva tirada do lado daqueles que mandam, aquilo que propicia o comando com obediência espontânea..
O poder político não pode apenas ser visto na perspectiva unidimensional daquela perspectiva elitista que o concebe como uma pirâmide onde, em cima, está a classe política dos governantes e, na base, a larga planície dos súbditos ou governados. Há que perspectivar também a perspectiva bidimensional, que aponta para a existência de uma face invisível do poder, onde quem governa tende sempre a controlar o programa dos debates, bem como aquela perspectiva tridimensional que confunde os interesses do que dá o consentimento.
Qualquer democracia, no plano das realidades, assume-se como uma poliarquia, como um sistema de competição pluralista e como uma sociedade aberta. Democracia para o país legal e para a cidade dos deuses e dos super-homens. Poliarquia para o país das realidades e para a cidade terrena dos homens concretos! E é dessa mistura entre o céu dos princípios e o enlameado, ou empoeirado, do caminho pisado que, afinal, nos vamos fazendo.
O que Dahl dizia da anterior sociedade norte-americana pode valer prospectivamente para a actual realidade portuguesa que, com a importação da sociedade aberta, vai vivendo a chegada da nova circulação social, agora que o plano das estradas de Fontes Pereira de Melo e Duarte Pacheco se vai concretizando.
Nestes termos, Dahl, um dos mais recentes clássicos da teoria da democracia, desenvolve a respectiva tese pluralista, segundo a qual há um grande número de grupos que participam no jogo político, cada um deles procurando, por si mesmo, uma determinada vantagem. E o governo seria o ponto de encontro da pressão desses grupos, seria a resultante de uma espécie de paralelograma de forças.
Ao governo caberia, assim, conduzir uma política que reflectisse os factores comuns às reclamações dos diversos grupos, pelo que a direcção da vida pública teria de ser partilhada entre um grande número de grupos. Grupos todos eles rivais, tentando cada um, em detrimento dos outros, exercer uma influência mais importante sobre a sociedade.

Partido, o que é?

Na polis grega, a palavra correspondente era stasis, que começando por corresponder à nossa conotação de partido, depressa passou a corresponder a uma denominação pejorativa, entendida como facção e depois como sedição. Como o sinal de uma guerra interior, de uma guerra civil, um estado doentio, uma degenerescência da política.
Aliás, num dos primeiros inventários funcionalistas sobre as características dos partidos políticos, de Joseph La Palombara e Myron Weiner, são enumeradas as seguintes características dos mesmos: durabilidade, estrutura complexa, vontade de implantação popular, vontade deliberada de exercer directamente o poder).
Porque os partidos organizam a opinião pública, comunicam as reivindicações aos centros de decisão; articulam para os seus seguidores o conceito e o significado de uma comunidade em geral; estão intimimanete ligados ao recrutamento político.
Deles, pode dizer-se o que vem em qualquer manual de estasiologia do princípio do século. Por exemplo, seguindo Ostrogorski, de 1902, podemos dizer que os nossos partidos também são meros instrumentos de elites escondidas por trás daquilo que designava por programas omnibus (programas que oferecem soluções universais que nunca se realizam, programas tipo pai natal que oferecem tudo a todos). Que quanto mais cresce o elitismo dos organizadores dos partidos, mais cresce o indiferentismo das massas (o não vale a pena).
Acrescentemos o que deles disse Robert Michels, em 1911. Que todos eles estão sujeito à lei de ferro da oligarquia; que a democracaia desemboca naturalmente numa oligarquia, marcada pela vontade de poder, porque quanto mais massificação mais organização. Que quanto mais divisão de trabalho, mais necessidade de uma classe de políticos profissionais e de peritos. Até porque todo o partido político, para ganhar votos, tem de perder a sua virgindade política e entra em relação de promiscuidade com os elementos políticos mais heterógéneos;
Robert Michels analisando o SPD, o principal partido de organização de massas na viragem do século XIX para o século XX, vem falar na lei de ferro da oligarquia, segundo a qual quem diz organização diz necessariamente oligarquia, na emergência dentro destes novos grupos, de uma nova minoria organizada, que se eleva à categoria de classe dirigente.
Com efeito, o que escreviam Ostrogorski em 1902 e Michels em 1911, analisando os recentes partidos de militantes, agrava-se quando enfrentamos os novos modelos de partidos do pós-guerra, os partidos catch all, attrape tout ou pigliatutto, especialmente em tempo de  teledemocracia e de sondajocracia.

Já no começo da década de cinquenta Maurice Duverger, na sua classificação tripartida do unipartidarismo, bipartidarismo e multipartidarismo, relacionando-a com o regime eleitoral salientava que um modelo de escrutínio maioritário a uma volta apontaria para o bipartidarismo.
Neumann veio, entretanto, acrescentar que o bipartidarismo seria acirrado por uma série de circunstâncias como a homogeneidade social e a continuidade política. Isto porque, em tal modelo, os partidos procuram ganhar votos ao centro, a fim de conquistarem uma maioria. Pelo contrário, o sistema multipartidarista seria marcado pelas tendências centrífugas dos diversos grupos políticos, sendo típico de sociedades multiformes e pouco conexas.
Contudo, Arend Lijphart salientou a existência de modelos de estabilidade política com multipartidarismo, como nos países escandinavos, contrariando o pressuposto de que o modelo bipartidário seria o único existente em sociedades politicamente estáveis, como aconteceria nos países anglo-saxónicos. Assim, distinguiu um multipartidarismo integral de um multipartidarismo moderado ou temperado pela existência de alianças estáveis e coerentes, porque grandes coligações, que apresentassem aos eleitores uma plataforma comum e que actuassem concertadamente no parlamento, modificariam profundamente o multipartidarismo. E quando se desse o dualismo das alianças até poderia cair-se num modelo quase bipolarista, a chamada bipolarização.
Utilizando a terminologia de Lapolombara e Weiner, diremos que, em Portugal, vivemos em regime de sistema político relativamente competitivo para os dois partidos dominantes do sistema, que têm tido ciclos de hegemonia, findos os quais se geram situações de alternância. Contudo, ultrapassando o espaço desta bipolarização dentro do grande centro, o sistema é claramente não competitivo, dado que os grandes partidos marginais não podem aspirar autonomamente à governação.
Saltando agora para o modelo de Giovanni Sartori, diremos que interessa considerar, para além do número de partidos, a multiplicidade da dinâmica política, procurando saber em que medida o poder político está fragmentado ou não fragmentado, disperso ou concentrado. Assim, podemos dizer que, entre nós, existe um pluralismo limitado, dado que é polarizado por dois grandes partidos com pouca fragmentação e alguma competição.

Grupo de pressão, o que é?

Um grupo de pressão é um grupo de interesse que exerce uma pressão, que passa do mero estádio da articulação e da agregação de interesses e trata de influenciar e pressionar o decisor político, saindo do âmbito do mero sistema social e passando a actuar no interior do sistema político. A pressão pode ser aberta ou oculta, pode actuar directamente sobre o decisor ou, indirectamente, actuando sobre a opinião pública. Entre as pressões abertas, destaca-se a acção de informação, a de consulta, bem como a própria ameaça. As duas principais formas de pressão oculta, isto é, não publicitada, são as relações privadas e a corrupção. As relações privadas passam pelo clientelismo, pelo nepotismo e pela pantouflage. A corrupção, como processo de compra de poder, tanto pode ser individual como colectiva, nomeadamente pelo financiamento dos partidos. Entre as acções dos grupos de pressão sobre a opinião pública, temos tanto o constrangimento como a persuasão. Na primeira, temos a greve, as manifestações, os boicotes ou os cortes de vias de comunicação. A persuasão tem sobretudo a ver com a propaganda e a informação.
Um interesse é o que faz o homem actuar, o fim que o movimenta, a relação de um homem com uma coisa ou com outro homem que lhe permite satisfazer uma necessidade. Já Cícero definia a res publica como uma multidão unida pelo consenso do direito e pela utilidade comum, ou por uma pacto de justiça e uma comunidade de interesses, que implicaria a communio. Pufendorf fazia derivar a sociabildade dos próprios interesses, porque os homens, em virtude daquilo que considera a imbecilitas, isto é, o desamparo de cada um, quando entregues a si mesmo, encontram-se num estado de necessidade (naturalis indigentia), necessitando uns dos outros para poderem sobreviver.
Hegel, por seu lado, fala na sociedade civil como a imagem dos excessos e da miséria, onde se desenrola o combate dos interesses privados, da luta de todos contra todos. Seria uma espécie de Estado Exterior (Aussererstaat), um Estado privado de eticidade, da consciência da sua unidade interna essencial, dado que na sociedade civil, apenas os indivíduos seus componentes se consideram governados pelos seus interesses particulares.
Jhering entende que a luta pelo direito abrange tanto a luta do homem pela realização dos respectivos interesses como a luta do Estado pela realização do interesse geral, chegando memso a considerar que os direitos subjectivos são interesses juridicamente protegidos
Já Max Weber substituiu a noção de bem comum pela de interesse, salientando que enquanto a pertença à sociedade, ou associação, assenta numa partilha de interesses, marcada por uma vontade orientada por motivos racionais, já a comunidade é entendida como um grupo a que se pertence por aceitação de valores afectivos, emotivos ou tradicionais, considerando que a acção comunitária refere‑se à acção que é orientada pelo sentimento dos agentes pertencerem a um todo. A acção societária, por sua vez, é orientada no sentido de um ajustamento de interesses racionalmente motivado. Mais do que isso: Weber estabelece uma graduação associativa que passa pelos graus de sociedade, grupo, empresa, instituição, Estado. Na sociedade os indivíduos calculam os interesses mútuos. E de uma sociedade pode passar‑se ao grupo quando esse entendimento de interesses passa a contrato explícito, acontecendo uma empresa quando o fim é determinado de forma racional. Um grau mais elevado de empresa é a instituição, quando a empresa é habilitada a impor aos respectivos membros o seu comportamento pela via do decreto ou de textos regulamentares.
Já os grupos de pressão exercem a chamada influência, essa forma atenuada de poder, de capacidade de actuar sobre o comportamento de um determinado actor, que não usa a força, a autoridade ou a função. O conceito de influência tem sido bastante desenvolvido pelos politólogos contemporâneos, principalmente por Lasswell e Dahl, principalmente pelas distinções feitas entre o mesmo e os conceitos de força e de poder.
A influência situa-se na zona de fronteira entre a manifestação do interesse e a pressão, situando-se antes da utilização da força. Para Harold Lasswell, é a capacidade de alguém poder impor, de forma coercitiva, determinados interesses numa determinada relação social. Se é menos do que poder, dado que este tanto implica uma participação na tomada de decisões, ligando-se a uma coerção mais severa, é, contudo, mais do que a força, dado que esta não passa de mera situação de facto. Tanto o poder como a influência constituem formas de relação entre pessoas, pela qual, uma delas, no lado activo, leva a que outra, situada no lado passivo, actua de forma diversa do que actuaria sem a pressão da primeira. Contudo, na relação de poder, um caso especial de influência, a sanção é mais forte do que no caso da influência.
Dahl faz uma distinção entre força, influência e poder. A força é entendida como mera situação de facto, enquanto a influência aparece como uma relação entre actores, onde um deles leva os outros a agir de modo diferente daquele em que teriam agido sem a presença do primeiro. Já o poder constitui um caso especial de influência que implica perdas severas para quem recusa conformar-se-lhe, significando a capacidade para alterar a probabilidade dos resultados a obter.
Já em 1867 o nosso Eça de Queirós indicava a influência como um género onde se incluíam várias espécies, se utilizavam como meios a compra pura e simples de votos, a pressão e ameaça. Daí o desencanto: doze ou quinze homens, sempre os mesmos, alternadamente possuem o Poder, perdem o Poder, reconquistam o Poder, trocam o Poder. O Poder não sai duns certos grupos, como uma péla que quatro crianças, aos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar num rumor de risos.

Estado de direito, o que é?

Grande tem sido a confusão de doutrinas e o emaranhado de discursos sem crença sobre a recente aparição judicial na praça pública. Com efeito, ainda não nos mobilizámos em torno da força subversiva do Estado de Direito como Estado de Justiça. Porque muitos ainda continuam a confundir o Estado de Direito com o mero Estado de Legalidade.
Houve, e há, Estados que nem eram democráticos nem de direito, mas que sempre se assumiram como Estados de Legalidade, acirrando o normativismo positivista na formação dos juristas e inscrevendo no portal dos tribunais o lema do  dura lex, sed lex (a nossa I República e o nosso velho Estado Novo). Houve, e há, Estados democráticos que começaram por não ser Estados de Direito (o nosso Estado abrilista, de 1976 a 1982). Há ainda Estados de Direito que ainda não assumiram a plenitude do Estado de Justiça (o nosso Estado pós-cavaquista e pós-soarista, aqui e agora).
Até há pouco tempo, o Estado de Direito era mero apanágio dos juristas, continuava enevoado pela penumbra protectora do campo jurídico, era objecto de um discurso apenas acessível aos iniciados (Jacques Chevalier). Agora, que começa a surgir na praça pública, talvez se torne num assunto demasiadamente sério para ser apenas deixado aos magistrados, aos advogados e aos restantes juristas. Tal como as questões da segurança não são apenas para os polícias e os serviços secretos. Tal como as questões políticas não são apenas para a classe política.
Porque, felizmente, não vivemos num regime de paz dos cemitérios, temos aprendido, com a experiência, que o Estado é cada vez mais o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensões da sociedade (Stéphane Rials).
Com efeito, o núcleo essencial dos Estados Absolutistas dos Anciens Régimes era marcado por três tópicos nucleares: primeiro, que L'État c'est moi, isto é, que o Estado é igual ao ponto de cúpula do sistema, ao soberano rei-sol que devia ser déspota porque se presumia esclarecido, só pela circunstância de alguns filósofos quererem que as respectivas luzes se potenciassem pelo chicote. Segundo, o quod princeps placuit legis habet vigorem, que aquilo que o príncipe pretende tem força de lei, que o soberano está ab-solutus, solto, livre de limites, nomeadamente do direito. Uma ideia bem expressa por Hobbes, para quem o soberano teria poder de fazer as leis e de as abrogar, pelo que também poderia, quando assim o desejasse, livrar-se dessas sujeições anulando as leis que o perturbam e proclamar novas leis. Terceiro que princeps a legibus solutus, que o príncipe, o soberano, não está sujeito à lei que ele próprio edita para os outros.
Foi contra este ambiente de despotismo ministerial que o Estado de Direito do demoliberalismo contemporâneo veio responder, proclamando que o Estado de Direito, em vez de um pacto de sujeição (pactum subjectionis), face a um soberano exterior, exige um radicado pacto de união (pactum unionis), que se traduz tanto num contrato social originário, dito pacto de constituição (pactum constitutionis) como em sucessivos pactos de adesão de uma soberania popular periodicamente manifestada através de eleições livres e pluralistas, pelas quais pode mudar-se, sem a violência naturalista, o conjunto dos poderes estabelecidos.
Não se pense, contudo, que foi fácil esse regresso à política, à cidadania e ao consenso do direito. Não se pense que continua a ser pacífica essa operação de constitucionalização do poder e de juridificação da política (Blandine Barret-Kriegel). Essa perspectiva do Estado-aparelho de poder como simples manifestação do Estado-comunidade, o regresso à necessária concórdia entre o princeps e a res publica. Esse entendermos que o reino não é para o rei, mas o rei para o reino.
É bem complexa a missão da paz contra a guerra e do direito contra o poder. É ciclópica a tarefa de sairmos da razão de Estado e entrarmos no Estado-Razão. E muitos continuam a não compreender a necessidade de uma operacionalidade que garanta o rex eris si recte facias, do serás governante se fizeres o bem, podendo seres punido em nome do senão ... não.
É difícil polir e civilizar o despotismo, isto é, darmos polis e civitas àqueles que continuam a não distinguir o Estado da casa, a confundir o governo político e civil com o governo doméstico, para utilizarmos as palavras de Montesquieu.
O próprio nome Estado de Direito, proveniente da expressão anglo-saxónica rule of law onde rule não é império, nem law é lei, conforme as habituais traduções que são traições, tem demorado a entrar no discurso dos juristas e nem sequer aparecia na versão original da Constituição de 1976.
O tópico apenas começou a ser utilizado a partir de finais do século XIX, nomeadamente pelo impulso do professor de Oxford A. V. Dicey (1835-1922), na obra Introduction to the Study of the Law of the Constitution, de 1885, sendo por ele definido como absence of arbitrary power on the part of government.
Aí considera que the rule of law é o princípio fundamental da constituição britânica, distinguindo-o do conceito francês de legalidade, desenvolvido pelo direito administrativo, e do Rechtstaat alemão dos finais do século XIX.
Uma das primeiras consequências do princípio está na ausência doe poder arbitrário, ou discricionário, marcado pelo capricho, por parte do government. Com efeito, tal princípio impõe, por um lado a supremacia absoluta, ou a predominância, da lei regular, entendida como o oposto do poder arbitrário, e, por outro, a igualdade perante a lei, ou a sujeição de todas as classes à lei ordinária, sem privilégio para os próprios funcionários ou agentes do Estado.
Por último, a fórmula expressa o facto de, nos domínios da constituição britânica, the law of the constitution, não ser a fonte, mas antes a consequência dos direitos dos indivíduos, como a liberdade pessoal, a liberdade de discussão ou o direito de reunião em público.
O mesmo Dicey, observando o crescendo do legalismo e da codificação, principalmente nos domínios do direito penal, falava num decline of reverence for the rule of law, assinalando a profunda relação entre o direito e a moral social, os mores maiorum, no âmbite dos regimes democráticos.
O tal Estado de Direito nasceu como contra-imagem e contra-semelhança do Estado de Não Direito. Porque, como dizia o nosso jurista dos finais do século XVIII, António Ribeiro dos Santos, em um governo que não é despótico, a vontade do rei deve ser a vontade da lei. Tudo o mais é arbitrário; e do arbítrio nasce logo necessariamente o despotismo. Porque, como dizia, no século anterior outro jurista português, Manuel Rodrigues Leitão (1630- 1691), nem tudo o que se pode é lícito, quem faz tudo o que pode está muito perto de fazer o que não deve.
Isto é, o Estado de Direito mergulha bem fundo na história da liberdade. Em todos aqueles que sempre proclamaram que todo o poder é um poder-dever, um encargo ou um ofício. Onde o detentor do mesmo é apenas um servidor, um oficial, um servus ministerialis, um escravo do fim para que lhe foi conferido o mesmo poder, pelo que, quem abusa do poder, como quem abusa do direito, deixa de ter poder e deixa de ter direito
Porque o Estado de Direito visou reconciliar a política e o direito, onde, no dizer de mestre Cabral de Moncada, o direito tem de passar a servir uma política, mas onde, por outro lado, a política tem que ser limitada pelo direito. Porque o Estado de Direito é aquele onde o poder não só tem o seu fundamento no direito, como também está, externa e internamente, limitado pelo mesmo direito.
Desta forma, utilizando palavras de Alceu Amoroso Lima, visa-se que a política não negue o direito, evitando o espectro da tirania, e, por outro lado, que o direito não negue a política, impedindo que se levante o espectro da anarquia. Visa-se, em suma, o ideal democrático, esse regime que procura reunir a política e o direito no plano da ordem pública.
Toda esta digressão teórica visa apenas chamar a atenção para a circunstância de a democracia restaurada a partir das revoluções demoliberais ter cometido o pecado de acreditar na sacralidade de uma lei feita por deputados eleitos e na plenitude de códigos de leis, ditos sistemáticos, sintéticos e scientíficos, reduzindo o magistrado à mera boca que pronuncia as palavras da lei.
Numa primeira fase, quando não se admitiu a hipótese de uma lei injusta e quando se considerou a justiça como mera questão metafísica, apenas se admitiu o princípio da legalidade, ou de primauté de la loi, conforme as perspectivas reducionistas das escolas do positivismo exegétido e codificacionista.
Ficou sem perceber-se que a lei tanto podia resultar de uma vontade de todos, através dos seus representantes eleitos, como da própria decisão de um executivo. Continuou a proclamar-se que a obediência faz o imperante e a considerar-se o poder soberano como o circuito directo de comando entre um superior e um conjunto de inferiores colocados em estado de sujeição.
Numa primeira fase, o tópico foi conceituado como simples Estado de Direito Formal, como o Estado onde haveria igualdade da lei ou igualdade de todos perante a lei. Numa segunda fase, passou a assumir-se de forma bem mais complexa, quando se redescobriu que o direito não podia ser reduzido à lei ou ao decreto do príncipe, mas antes a algo de mais transcendente, a Justiça.
É que, num Estado de Direito, como Estado de Justiça, já não bastaria a mera igualdade da lei, exigindo-se maior profundidade, a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei, a tal igualdade global, identificada com a justiça, que, se impõe o tratamento igual daquele que é igual, também exige o tratamento desigual daquele que é desigual.
O que implica, não apenas a justiça comutativa, mas também a justiça distributiva e a justiça social, isto é, as categorias aristotélicas e tomistas, que, segundo Leibniz, seriam correspondentes aos antiquíssimos preceitos do direito romano (praecepta juris): o alterum non laedere ( o não prejudicar o outro), o suum cuique tribuere (o dar a cada um o seu, o dar a cada um conforme as suas necessidades) e o honeste vivere (o viver honestamente, o exigir de cada um conforme as suas possibilidades).
Isto é, o tópico Estado de Direito é bastante mais problemático que o simples primauté de la loi ou que o mero princípio da legalidade, conceitos com que a doutrina positivista o tentou aprisionar nas teias do mero juridicismo.
Desculpem continuar a insistir nestas doutrinarices, mas, voltando a glosar Fernando Pessoa, eu só posso admitir que o Estado está acima do cidadão se, antes, considerar que o Homem está acima do Estado.

Tecnocracia, o que é?

Foi nos anos trinta do século XX que surgiu nos Estados Unidos da América a ideia de tecnocracia como uma nova forma de organização da sociedade, quando se admitiu que a economia poderia passar a ser dirigida por técnicos e organizadores, independentes dos proprietários.
Baseia-se na noção de eficiência, apelando para o domínio dos organizadores. Trata-se de uma velha tendência de todas as civilizações, também patente no mandarim do modelo chinês, o qual, para atingir esse estado era obrigado a um rigoroso exame, equivalente à s provas a que é sujeito o nosso licenciado ou à obra prima que era obrigado a fazer o companheiro das corporações medievais quando queria atingir o estatuto do mestre.
O fenómeno que também afectou o estalinismo transformou-se, pelo menos no campo ocidental, numa ideologia que, segundo Jean Meynaud, radica no facto de reservar o lugar central aos fenómenos económicos: a sua construção e articulação realiza-se em função da vida económica; auto-justifica-se em termos de eficácia económica para descobrir soluções óptimas no campo do bem-estar social, caracterizando-se  pelo emprego dos métodos das ciências físicas para solucionar problemas sociais, assim como por uma grande confiança na técnica da planificação para regulamentar e desenvolver a economia.
Constitui uma espécie de transposição para a Europa Ocidental do pragmatismo norte-americano, mas desligado dos valores morais que sustentam a american way of life, transformando-se numa espécie de ideologia desenvolvimentista marcada pela ingenuidade planificadora. De certa maneira, não uma forma de tradução em calão do mito da era dos organizadores, conduzindo para o materialismo das sociedades de consumo e para os vazios éticos das falsas ideias de progresso.
Como salientava Paulo VI, há um neopositivismo tecnocrático que considera a técnica universal como forma dominante de actividade, como modo invasor de existir, mesmo como linguagem, sem que a questão do seu sentido seja realmente levantada.
Segundo Habermas, a relação entre o saber, a ciência e o político pode ser encarada de forma decisionista, de forma tecnocrática ou de forma pragmática. No modelo decisionista, os políticos conservam fora dos âmbitos da praxis coactivamente racionalizados uma reserva em que as questões práticas devem continuar a decidir-se por meio de actos de vontade. Já o modelo pragmatista considera que há uma comunicação recíproca  onde os peritos aconselham os políticos que, por sua vez, os encarregam segundo as necessidades da prática. No modelo tecnocrático, os peritos são os verdadeiros soberanos e os políticos apenas tomam decisões fictícias.
Chega-se, assim, ao Estado dos tecnocratas, da tecno-estrutura (Galbraith) da managerial revolution (Burnham), típico da sociedade industrial. Um Estado que se transformou num Welfare State nas suas várias versões: desde o intervencionismo do New Deal e do keynesianismo dos modelos de raiz liberal, aos Estados Novos dos autoritarismos corporativos, depois transformado no Estado Social das ciclópicas tarefas, conforme a terminologia de Marcello Caetano. Legaz y Lacambra, a este respeito, refere a transformação do Estado Abstencionista num Estado Intervencionista. François Perroux, por seu lado, procurando traduzir a mesma realidade, fala na passagem de um Estado Abstencionista para um Estado Económico, de economia mista ou de economia de duplo sector. Há assim uma identificação entre Estado da Sociedade industrial e o Estado Administrativo ou Estado com executivo forte, todos produto de uma certa fase ideológica do mundo, dita da tecnocracia.

Anticlericalismo, o que é?

O anticlericalismo difere do chamado laicismo, dado implicar uma hostilidade aberta face ao mundo clerical, pelo facto deste ter influência social ou política. O laicismo apenas rejeita a influência da Igreja na esfera pública, considerando que os assuntos religiosos pertencem à esfera privada de cada indivíduo
Saliente-se que, por ocasião do decreto de 28 de Maio de 1834, sobre a extinção das congregações religiosas, havia em Portugal cerca de quatro centenas de conventos e meia centena de hospícios. Esta preponderância talvez explique o processo do nosso anticlericalismo, algo bem diferente do laicismo, que e típico da estadualidade, dado implicar uma hostilidade aberta face ao mundo clerical, pelo facto deste ter influência social ou política, enquanto o laicismo apenas rejeita a influência da Igreja na esfera pública, considerando que os assuntos religiosos pertencem à esfera privada de cada indivíduo.
O anticlericalismo contemporâneo remonta ao anticongreganismo iluminista, sendo sobretudo marcado pelo espírito de perseguição aos jesuítas, notando-se várias ondas desde a Revolução Francesa, que teve os seus principais picos no movimento da unificação italiana, na Kulturkampf de Bismarck, entre 1871 e 1878, e no modelo da Terceira República francesa, marcada pelo positivismo. O caso Dreyfus agrava a tensão e culmina com a Lei da Separação de 12 de Dezembro 1905, do governo Combes.
A Igreja tem várias reacções. Pio IX em 1864, edita a Syllabus, onde inclui, entre os oitenta erros que deviam ser reprovados pelos católicos, o racionalismo, o naturalismo e o liberalismo, porque este consideraria que a autoridade não é mais do que a soma do número e das forças materiais. Leão XIII em 1891, com a Rerum Novarum, admite que os católicos passem a entrar nas regras do jogo do demoliberalismo.
Por mim, que me considero um tradicionalista não confessional, se aceito, naturalmente, a essência do legado da doutrina social da Igreja Católica, também adiro a alguns dos principais aspectos libertacionistas ou salvacionistas da democracia-cristã contemporânea, mas apenas quando esta defende um modelo de Estado Laico, cristãmente inspirado, de uma cidade laica marcada por valores cristãos (Jacques Maritain) e não a uma visão de uma res publica christiana, caracterizada pelo constantinista princípio do cujus regio ejus religio, que chegou, por exemplo, a considerar a religião católica como a religião oficial da nação ou do Estado.
Não utilizamos, contudo, o adjectivo laico segundo o conceito maçonico-iluminista, como menção anti-católica. Pelo contrário, defendemos uma visão profana da política, considerando que ao cristianismo cabe a tarefa fundamental de conformação dos valores sociais, sem qualquer privilégio estadualmente concedido.

Princípio da subsidiariedade, o que é?

O princípio equivale ao conceito de Estado supletivo. Defendido pela primeira doutrina social da Igreja Católica e próximo das teses do pluralismo inglês e do institucionalismo.
Num corpo político, as parcelas, apesar de relacionarem hierarquicamente, cada uma delas desempenha a sua função, ou o seu ofício, e, para tanto, são dotadas de autonomia, a base da diversidade onde a união é conseguida pelo movimento de realização do bem comum.
O poder político não está apenas concentrado na cabeça do corpo político. Pelo contrário, reparte-se originariamente, constituintemente, por todos os corpos sociais dotados de perfeição. Deste modo, cada corpo social tem um certo grau de autonomia para a realização da sua função.
E o corpo político não passa de uma instituição de instituições de um macrocosmos de microcosmos e macrocosmos sociais, de uma rede de corpos sociais, de um network structure. Porque há uma diversidade que apenas se une pela unidade de fim, pela unidade do bem comum que a mobiliza.
Portanto, uma sociedade de ordem superior não deve intervir na esfera de autonomia de uma sociedade de ordem inferior, da mesma maneira como uma sociedade de ordem inferior também pode transferir funções e consequentes poderes para uma sociedade de ordem superior. Porque o princípio da subsidariedade é o mesmo que o princípio da subjectividade da sociedade.
Da consideração de cada sociedade como um sujeito e não como um objecto ou como um contrapoder. Que vários níveis de sociedades políticas podem coexistir sobre a mesma multitudo. Porque sendo a polis mera essência relacional, cuja essência substancial é o indivíduo, pode este desdobrar-se participativamente, conforme os interesses e os bens comuns que lhe dão comunhão com os outros.
Trata-se de um corporatismo ou de um corporacionismo pluralista que se distingue tanto do individuaalismo atomicístico como do holismo colectivista, dado que pretende conciliar os contrários da diversidade, sem fragmantação, e da unidade, sem negação da autonomia das parcelas que integram o todo.
Indo mais fundo, podemos dizer que o princípio da subsidiariedade retoma o conceito de bem de Aristótoles, segundo o qual todas as coisas tendem para a perfeição tendem para a realização do seu bem, da sua causa final, São Tomás de Aquino estabeleceu a noção de bem comum como a síntese da ordem e da justiça. Francisco Suárez fala, depois, num bonum commune societatis civilis, que constitui uma realidade distinta tanto da felicidade natural 
A ideia foi depois laicizada, traduzindo a tentativa de conciliação da ideia estática de ordem com a ideia dinâmica de justiça, aproximando-se do dualismo paz e direito, onde é possível a ordem pela justiça e a paz pelo direito. No século XX a ideia foi retomada pelo neotomismo de Jacques Maritain, em Les Droits de l'Hommme et la Loi Naturelle, onde o bem comum além de se assumir como fundamento da autoridade, exige redistribuição e implica uma visão mais geral de boa e recta via da própria humanidade.
Na base do tópico tomista, está, como dissemos, a ideia de bem viver de Aristóteles, quando este considera que o fim da polis tanto é a autarquia como o bem viver (eu zein). Não visa apenas as necessidades vitais, não segue apenas a linha do parentesco, procurando um fim bem diverso, o bem viver. Não tem apenas em vista a existência material, mas também uma vida feliz, ao contrário do que sucede com uma colectividade de animais.
Não é também e apenas um conjunto maior que a aldeia, já que a genos, apesar de poder ser maior, não é uma entidade política, mas uma entidade étnica. Só a polis é, neste sentido, uma associação completa e perfeita. A polis é a comunidade do bem viver para as famílias e os agrupamentos de famílias, tendo em vista uma vida perfeita e independente.
 O modelo clássico da polis sempre foi marcado pela ambivalência. Se, por um lado, ela visa atingir a autarquia, aquele espaço de auto-suficiência que lhe permite satisfazer as necessidades vitais dos respectivos membros, ela também existe para bem viver. Segundo as próprias palavras de Aristóteles, a polis, formada de início para satisfazer apenas as necessidades vitais, ela existe para permitir bem viver (eu Zein) ou viver segundo o bem. É esta dupla exigência que transforma a polis numa sociedade perfeita. Não apenas porque visa a autarquia, o viver, mas porque, além do viver, exige o bem viver. E esta exigência de bem viver que faz da polis uma forma de associação humana totalmente diferente das associações infrapolíticas. Porque se todas as formas de associação humana visam um determinado bem (agathon), aquela que visa um bem maior tem de ser superior à que visa um bem menor. Haverá assim uma comunidade que é a mais alta de todas e a que engloba todas as outras. Esta comunidade é a aquela a que se chama polis, é a comunidade política.  
Nestes termos, São Tomás assinala que a civitas não reduz a perfeição à mera auto-suficiência de bens materiais, considerada como condição secundária e quase instrumental do bem viver. Este consistiria num viver segundo a virtude, considerada como condição primária, onde a virtude é entendida como aquilo por que se vive. no bem viver do homem são necessárias duas condições : a principal é viver segundo a virtude, entendendo por virtude aquilo por que se vive bem (qua bene vivitur); a segunda secundária e quase instrumental, é a suficiência dos bens corporais, cujo uso é necessário aos actos da virtude. Se esta unidade no homem é produzida a causa pela natureza, já a unidade de um povo, que é chamada paz, deve procurar-se por indústria.
Assim, para criar o bem viver de uma multidão são necessárias três condições: que ela seja constituída numa unidade de paz; que seja dirigida para o bem; que por acção do governante, sejam suficientemente providas as coisas necessárias ao bom viver. A civitas é perspectivada como uma unidade auto-suficiente (perfecta communitas) porque se basta a si mesma, como uma entidade suprema que engloba todas as outras comunidades, desde a família à aldeia. Como uma entidade que está acima da família, mas que não que, nem por isso, deixa de estar dependente do bem comum do universo, que está acima da civitas ou regnum.

Institucionalização do poder, o que é?

A ideia de institucionalização do poder traduz essa forma de organização de poder nascida do facto de os homens quererem deixar de obedecer a outro homem, passando a obedecer a uma instituição ou a uma abstracção. Uma operação jurídica de transferência do suporte do poder da pessoa dos governantes para uma entidade abstracta e ideal, independente das pessoas dos governantes. Para uma entidade dotada de unidade, de continuidade, de poder fundado e limitado pelo direito.
Conforme as palavras de Georges Burdeau: a institucionalização do Poder é a operação jurídica pela qual o Poder político se transfere da pessoa dos governantes para uma entidade abstracta - o Estado. O efeito jurídico desta operação é a criação do Estado como suporte do poder independente da pessoa dos governantes. Neste sentido, refere que o Estado não é justaposição de um grupo, de um território, de um chefe, mas antes uma certa maneira de ser do Poder, pelo que não há Estado em todos os grupos humanos que vivem num território próprio sob a coerção de um chefe, exigindo‑se unidade, continuidade, poderio e limitação pelo direito.
Porque, retomando Pufendorf, os seres morais não são coisas como os seres físicos, não se possuem senão pela instituição.
Só assim o poder passa a poder-dever, volvendo-se em função, em ofício. E o servidor do poder, o funcionário, transforma-se em servo da função, no tal servus ministerialis, donde deriva a nossa palavra ministro, o escravo do ministerium, do ofício, do fim, ou da ideia que norteia o poder.
Para o o citado Georges Burdeau, uma instituição é uma empresa ao serviço de uma ideia, organizada de tal modo que, achando‑se a ideia incorporada na empresa, esta dispõe de uma duração e de um poder superiores aos dos indivíduos por intermédio das quais actua. Esta institucionalização do poder permite ao grupo que se continue, segundo uma técnica mais aperfeiçoada, a procura do bem comum; assegura uma coesão mais estreita entre a actividade dos governantes e o esforço pedido aos governados; torna mais flexível a influência da ideia de direito sobre os comportamentos sociais e, com isso, constitui o progresso mais seguro que pode realizar‑se numa sociedade política.
Neste sentido, considera que a institucionalização do poder é o resultado de uma atitude inteligente do homem relativamente ao problema do Poder; o Estado é um conceito, o suporte ideal do poder público. Ora, só o homem pode dar origem ao conceito, pensando o Estado como tal.
Também segundo o ideal-realismo de Maurice Hauriou, a instituição é une idée d'oeuvre ou d'entreprise qui se réalise et dure juridiquement dans un milieu social. Dentro da noção, importa assinalar quatro ideias: a ideia de obra ou de empresa; a ideia de comunhão; a ideia de regras; e a ideia de órgãos de poder.
A ideia de obra ou de empresa produz um fenómeno de interpenetração das consciências individuais, onde são as consciências individuais que se pensam umas às outras e que assim se possuem umas às outras. A ideia de comunhão traduz a manifestação de comunhão entre os membros do grupo, onde as ideias geram a adesão dos membros do grupo). A ideia de regras reflecte a existência de um conjunto de regras que estabelecem o processo de tomadas de decisões. A ideia de órgãos de poder tem a ver com uma série de órgãos de poder que representam o grupo e que tomam ou executam decisões dentro do grupo.
Blandine Kriegel refere que o aparecimento do Estado resultou de uma dupla operação: primeiro, a juridificação da política; depois, a constitucionalização do poder. Porque deu direito a uma sociedade senhorial e civilizou uma comunidade guerreira. Foi o direito contra o poder, a paz contra a guerra, o Recthstaat  contra o Machtstaat. No fundo, equivale à velha expressão de Plínio, dirigindo-se a Trajano, quando aquele proclamava que inventámos um Príncipe para deixarmos de ter um dono. Para, em vez de continuarmos a obedecer a outro homem, podermos passar a obedecer a uma abstracção, utilizando as categorias de Georges Burdeau.
Em síntese, o Estado representa a tentativa de passagem de uma razão de Estado a um Estado razão, a tentativa de transformação da política numa espécie de realização da filosofia entre os homens.

Cesarismo, o que é?

Uma das formas de degenerescência dos regimes políticos é o cesarismo, um dos nomes dados àquilo que Benjamin Constant qualificou como usurpação, dado que, mantendo-se, na aparência, as anteriores formas de liberdade, mas para as profanar, se gera uma contrafacção da liberdade. Foi o caso do principado em Roma e do bonapartismo, dado que ambos levaram a um poder individualizado, com o consequente culto da personalidade.
A transferência da soberania do povo para a pessoa que a exerce de forma concentracionária tanto pode fazer-se por aclamação como por plebiscito,  mantendo-se, contudo, alguns órgãos de representação popular.  O nosso Alexandre Herculano chegou a falar, a propósito, no despotismo dos césares de multidões.
De qualquer maneira, o cesarismo, se admitiu formas de representação parlamentar, sempre as fez depender do poder policial e militar. Assumiu sobretudo o diálogo directo entre as massas populares e o líder, considerado um representante directo de uma soberania una e indivisível.
Giulio Evola considera o modelo como aquele sistema de poder herdeiro dos condottieri da Renascença, contrário aos elitismos, salientando que é o sentimento da distância que provoca nos inferiores a veneração, o respeito natural, uma disposição instintiva para a obediência e lealdade para com o chefe, porque, quanto  maior for a base, mais alto deve manter-se o cume. Já o bonapartismo, marcado pelo complexo da superioridade,  precisa de manifestações, ainda que ilusórias, demonstradoras do seguidismo e do apoio ao líder, porque o superior precisa do inferior para experimentar o sentimento do seu próprio valor e não o contrário, como seria normal.
Já o culto da personalidade exige a exaltação sistemática de um dirigente máximo de um país, principalmente pela acção da propaganda.O culto transforma o chefe numa espécie de pai da pátria que, ao contrário do paternalismo monárquico, parece dotado dos poderes de um super-homem, principalmente no tocante à coragem. Só os processos de propaganda política do século XX, desde a fotografia ao cartaz gigantesco, passando pelo próprio cinema, permitiram tal modelo que, paradoxalmente, afectou em particular os partidos comunistas. Aliás, a expressão foi usada pela primeira vez em 1956 pelo PCUS, para caracterizar o modelo de Estaline, entre 1924 e 1953.
Com efeito, quanto mais formatada pela legitimidade racional é uma ideologia, mais ela precisa de ser compensada pelos recursos à legitimidade carismática artificiosa, onde a magia do chefe inventado também apela para as memórias da legitimidade tradicional.
Também entre nós se deu o culto da personalidade de Salazar durante o Estado Novo, vestindo-o da couraça de D. Afonso Henriques em luta contra a moirama do reviralho e comunista ou fazendo coincidir o respectivo perfil com o mapa do Portugal europeu. Não faltou sequer a própria instrumentalização de uma das figuras do  painel de Nuno Gonçalves, de tal  maneira que o oposicionista monárquico Hipólito Raposo chegou a caracterizar o regime do Estado Novo como uma salazarquia.

Revolução, o que é?

Já Platão salientava que as formas boas de governação são as que imitam as formas originais, as que copiam ou preservam as normas originais. Também Aristóteles referia que o posterior, o que vem depois, é uma degenerescência face àquilo que estava antes, face ao anterior. Ambos consideram que anterior é melhor e que o posterior é pior, porque o que estava antes é sempre superior e mais perfeito. Por exemplo, a tirania é uma degenerescência face à realeza e a oligarquia uma corrupção da aristocracia.  Daí a ideia de revolvere, isto é, cair para trás, que chegou à língua portuguesa através do francês révolution, que, em sentido etimológico, é um retrocesso do tempo, visando um recomeço e identificando-se com a ideia de regeneração.
Utilizando a definição de Albert Camus, a revolução é a inserção da ideia na experiência histórica,  representa uma tentativa de modelar o acto sobre uma ideia, de moldar o mundo dentro de um caixilho teórico. Trata-se, segundo David Robertson, do mais dramático de todos os termos políticos, abrangendo, normalmente, a mudança violenta e total de um determinado sistema político, com directas implicações no ambiente, principalmente a nível do sistema social.
Na sequência da ideia de revolução, importa referir a sucessiva procura de novos ciclos que talvez não passem de mais um reflexo da inevitável anaciclose que marca os revolucionários frustrados. Daqueles que, parecendo mudar, apenas voltam para trás, porque revolucionam em torno do próprio eixo, à procura da juventude perdida. Porque, conforme ensinam os manuais de léxico grego, anakylitikos é, precisamente, o que se pode virar, isto é, o que se pode ler da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, vivendo a angústia do eterno retorno. É o que acontece a todos os situacionismos quando perdem o inicial estado de graça e reconhecem que não conseguem cumprir as paixões que proclamaram, quando, enfranquecidos governo de esquerda passam a ser dominados por mentalidades de direita e impotentes governos de direita passam a ser dominados por complexos e fantasmas de esquerda. Condenados a ficar rigorosamente ao centro e putrefactos na raiz do sonho, duram por durar, antes de apodrecerem por dentro, face à falta de eficaz oposição.

Mercado político, o que é?

A aplicação da ideia de mercado político foi feita principalmente pelos cultores da rational choice, na linha do utilitarismo e do individualismo metodológico. Já Max Weber refere que o mercado político se caracteriza pelo confronto de empresas políticas, consideradas como empressas de interesses. Assim, Jean-Jacques Rosa proclama que o mercado político é um lugar onde se trocam votos contra promessas de intervenções públicas.
O político é visto como um espaço de confronto entre a oferta e a procura, base do entendimento da relação entre governantes e governados. Estes assumem-se como consumidores ou clientes de governantes entendidos como gestores de empresas que tem como objectivo a maximização da capacidade de resposta face à s exigências dos governados. No caso concreto do mercado eleitoral hà ofertas públicas de programas de partidos e procura dos eleitores, desvalorizando-se o papel dos valores e da fidelidade partidária, aceitando-se a ideia de um eleitor individualista e racional. Os políticos entram em concorrência agindo segundo uma lógica racional equivalente à dos empresários económicos.

Acção colectiva, o que é?

A acção colectiva é a mobilização de grupos de indivíduos em torno de objectivos comuns, segundo as teses de Mancur Olson. Movimento que unifica diversos actores sociais, mobilizados conjuntamente para a satisfação de interesses comuns. Apesar de, na aparência, parecer unitária, há, para cada grupo, uma lógica diversificada. O autor em causa em The Logic of Collective Action. Public Goods and the Theory of Groups, Cambridge, Massachussetts, Harvard University Press, 1965, para quem os grupos não se comportam segundo a lógica de racionalidade dos indivíduos. Os indivíduos apenas se entregam espontaneamente numa acção colectiva, quando ela lhes dá uma vantagem própria.  Daí que nos grupos de grande dimensão, como num Estado ou num partido, os indivíduos apenas participem nas acções colectivas quando podem delas retirar vantagens específicias ou quando a não participação dá origem a sanções.
O homem é um animal racional e calculista que actua sempre de forma proporcional à recompensa esperada e não pelo bem comum, dado que este apenas pode ser marcante em grupos muito pequenos, onde existe coacção. Os benefícios colectivos não passam de subprodutos ou efeitos indirectos dos benefícios selectivos. O que é especialmente relevante no caso dos partidos políticos, onde a acção colectiva apenas resulta da luta pelos bens que beneficiam indivíduos particulares, os quais apenas tentam obter ganhos particulares que compensem o investimento individual feito na acção política.

Elite, o que é?

A expressão elite tanto pode ter uma conotação neutra, enquanto indivíduos ou grupos que ocupam as mais altas posições numa hierarquia social estratificada, como um sentido pejorativo, quando, com ela, quer significar-se um pequeno grupo de pessoas com um desproporcionado poder de influência sobre as decisões finais de um determinado grupo. Pode até ter um sentido positivo, quando com a expressão se entende um grupo de pessoas que possui melhores condições para o exercício de determinadas funções, nomeadamente pela educação recebida ou pelas capacidades demonstradas.
Neste último entendimento, a expressão tem a conotação de aristocracia, como o governo dos melhores, equivalendo à meritocracia e não ofendendo o princípio da igualdade, se existirem efectivas condições para o estabelecimento da igualdade de oportunidades. De qualquer maneira, o  estudo das elites constitui uma constante da ciência política. Depois de, nos anos cinquenta, sessenta e setenta, dentro do esquema sociologista e comportamentalista, surgirem os trabalhos de Meisel [1957 e 1958], Benn e Peters [1959], C. Wright Mills [1956], Treves [1961], Keller [1963], Bottomore [1964], Parry [1969], Domhoff [1967, 1970, 1978 e 1990], Amstrong [1973], Giddens e Stanworth [1974], Austin [1975], Freund [1976], Putnam [1976], Lebedoff [1981], e Marger [1987], eis que, recentemente, se prossegue essa pesquisa numa perspectiva mais globalista, com destaque para os trabalhos de Pierre Birnbaum [1977 e 1985].
Também entre nós, António Marques Bessa, na sua dissertação de doutoramento de 1993, Quem Governa?, e, posteriormente, n’A Arte de Governar, introduz o tema no universo da politologia portuguesa. O estudo das elites abrange não apenas a matéria teórica, como a investigação empírica sobre as elites administrativas, centrais e locais, os dirigentes e activistas políticos e os parlamentares.

Política, o que é?

A expressão política, que surge no vocabulário ocidental a partir do século XIII quando começa a circular a versão latina do tratado homónimo de Aristóteles, tem a ver com uma invenção dos gregos e dos romanos que o primeiro grande renascimento medieval trouxe ao Ocidente. Acontece  que politika, o plural de politikós, as coisas políticas, não é o mesmo que politeia, ou regime político, que deu origem à expressão medieval politia, nem se identifica como politikè, ou arte política, a soma de polis mais teknè.
Este aparente jogo vocabular,  que recobre a expressão portuguesa política,  foi desde sempre resolvido na língua inglesa, onde politics é o mero espaço de competição política, polity  é o modo de organização das sociedades humanas, e policy, o programa, a estratégia da competição política.
As coisas políticas, as coisas da polis, são as coisas que vão além do doméstico, além da casa, as coisas que começam na praça pública, ágora, forum ou largo do pelourinho, esse lugar de encontro do conselho, onde se exerce o diálogo entre homens livres. Fazem parte do espaço público e não do espaço privado. Logo há o político, tudo o que diz respeito à polis, o regime político, os princípios referentes à organização interna da polis, a arte política, a arte de governar os povos, os modelos políticos, o estilo de dirigir um governo, e o poder político, aquilo que fazem os políticos. O du politique  distingue-se assim de la politique, tal como polity, o modo de organização do Estado, não se confunde com policy, o programa e tipo de acção, nem com politics, o domínio onde entram em rivalidade os políticos.

Autenticidade, o que é?

Autenticidade é a qualidade daquele que autêntico, de autos, eu mesmo, traduzindo a aspiração do homem em ser ele mesmo, sem sofisticação e sem hipocrisia, em defesa da respectiva identidade. Tese assumida por Heidegger e, depois, desenvolvida pelos existencialistas, segundo a qual cada indivíduo deve poder criar-se a ele mesmo, através das suas próprias decisões, pela apropriação da autoconsciência. Para o mesmo Heidegger, a autenticidade é uma reflexão deliberada sobre os fins e os valores da vida, a única forma de podermos responder à angústia, permitindo que não haja auto-decepção. Os existencialistas vão assim falar na existência autêntca, expressão com que pretendem abarcar uma forma de vida que, no plano secular, equivale à ideia cristã de salvação.
Utilizando os conceitos do organicismo cibernético de Shils, diremos que passou a existir um centro dominante, cercado por uma periferia dominada ou subalterna, onde o centro é um fenómeno que pertence à esfera dos valores e das crenças. É o centro da ordem de símbolos, de valores e crenças que governam a sociedade. Porque este sistema central de valores gira em torno de um centro ainda mais fundamental que a aceitação e incorporação na autoridade. Manteve-se assim um novo modelo de corte, expressão derivada do latim cohors, cohordis, aquela parte da casa romana que estava ao lado e complementava o hortus, o jardim. Um nome que tanto deu a côrte dos reis, com um circunflexo no o, donde veio o cortês, a cortesia e o cortesão, como também se manteve numa designação de parte da casa rural portuguesa, a córte dos animais (com acento agudo no ó), enquanto na língua inglesa deu court, com o significado de tribunal.  Já Norbert Elias, na sua frustrada tese de doutoramento dos anos trinta considerava a corte real, nomeadamente a francesa, gerou um modelo de centro político, ao contrário do regime aristocrático britânico, que tornou as elites locais independentes do centro e ao estilo das universidades alemãs que foram impermeáveis ao iluminismo. É daqui que deriva aquele tipo de pessoal político que circula junto do centro do poder, não dando conselho ao príncipe, mas levando-lhe notícias, através da intriga de salão.

Obediência, o que é?

Obediência vem do latim obediscere, submeter-se à vontade de outrem e executá-la. É a acção de realizar a ordem dada por um superior, equivalendo a aquiescência, tácita ou expressa, face a um determinado comando.
A ideia foi particularmente acentuada pelo paternalismo e pelo absolutismo, gerando o modelo do hábito de obediência dos súbditos face a uma entidade superior, o soberano.
Outra é a perspectiva da obediência pelo consentimento, onde aquele que obedece apenas o faz  relativamente à quilo a que dá consentimento, pelo que, de certa maneira, obedece a si mesmo, assumindo-se, ao mesmo tempo, como súbdito e soberano, isto é, como cidadão. É esta a perspectiva do consensualismo.  Do mesmo modo se procura a autoridade, aquele quid que procura a obediência espontânea.
O normal numa comunidade política é a obediência espontânea exigida pela sociabilidade, pelo sentimento comunitário, pelo interesse individual de obedecer e só depois pela coacção, tanto a psicológica, como a virtual ou em potência, dita coercibilidade, ou coacção potencial
Logo, a coacção pode ser entendida como uma afirmação da liberdade. Porque, como refere Jacques Maritain, a autoridade deve ser obedecida em consciência, isto é, da maneira como os homens livres obedecem e no interesse do bem comum. O animal apenas tem obstáculos naturais, não tem liberdade e não sente a coacção. E esta, como ensina Castanheira Neves, não é mais que aquele instrumento de que as colectividades organizadas se servem para impor ao arbítrio a vinculação jurídica válida... a coacção defende a liberdade contra o arbítrio, mas a coacção só será válida se for o instrumento da aplicação de um direito válido e um direito válido é aquele que recebe o seu fundamento e encontra o seu limite na consciência ética, será esta também o fundamento e o limite da coacção aceitável.
Quem manda, manda, sobretudo, pelo reconhecimento daqueles que estão sujeitos ao mando. Porque todo o poder tende a ser um ofício, um simples poder-dever. Penetra-se assim na zona da autoridade, onde a obediência pelo consentimento é bem diferente da obediência pelo temor.
Utilizando palavras de Georges Burdeau, a autoridade é assim a qualificação para dar uma ordem, distinta do simples poder que é apenas a possibilidade de ser obedecido. Já não se trata de um dominium servile, produto do pecado, mas antes de um dominium politicum, que já exige legitimidade.
Como diz Rousseau, ainda o mais poderoso de todos os homens não será suficientemente poderoso, se não souber converter o seu poder em direito e a obediência dos outros em dever. Porque a força é uma potência física, de cujas actuações não pode resultar nenhuma moral.
Também Schiller refere que a única coisa que torna poderoso aquele que manda é a obediência daquele que obedece.
Contudo, saliente-se que, na perspectiva do absolutismo, é a obediência que faz o imperante (oboedientia facit imperantem). O soberano é absoluto porque não está limitado a não ser pela sua própria vontade. Não está limitado pelo direito, porque é ele que cria o direito e nem sequer está dependente das próprias leis que edita.
Porque aquilo que o principe quer, aquilo que o principe diz, tem valor de lei, o direito deixa de ser fundamento e limite do soberano. Também a soberania é vista como um circuito directo de comando, sendo determinada pela adesão ou submissão de um povo relativamente ao seu governo. Por outras palavras, a qualidade soberana, afinal, nasce de um hábito de obediência de uma determinada sociedade face a um superior.
Mas já Espinosa observava que a obediência não se refere tanto à acção externa quanto à acção anímica interna. Donde resulta que quem está mais submetido a outro, é quem decide com toda a sua alma obedecer- lhe em todos os seus preceitos; assim, quem tem a máxima autoridade, é quem reina sobre os corações dos súbditos.
Para Weber, se o poder enquanto Macht é a mera possibilidade de alguém impor a sua vontade a outrem, mesmo contra a vontade dele, já a segunda forma de poder, Herrschaft, implica a probabilidade de se encontrar obediência, que haja a presença efectiva de alguém mandando eficazmente em outros. Se no Macht o comando não é necessariamente legítimo, nem a submissão é obrigatóriamente um dever, já no Herrschaft, a obediência fundamenta-se no reconhecimento, pelos que obedecem, das ordens que lhe são dadas, isto é, tem de haver consentimento.
Por seu lado, Alain salientava que o cerne da política estava na relação entre a resistência e a obediência: o cidadão pela obediência assegura a ordem; pela resitência assegura a liberdade, dois termos que não seriam opostos, mas sim correlativos, porque não há liberdade sem ordem e a ordem de nada vale sem liberdade, pelo que haveria que obedecer resistindo, porque um homem livre contra um tirano, tal é a célula da política, isto é, obedecer em corpo; jamais obedecer em espírito; ceder absolutamente e, ao mesmo tempo, resistir absolutamente.

Totalitarismo, o que é?

Qualitativamente diferente da tirania é a experiência contemporânea do totalitarismo, como se manifestou no estalinismo, no nazismo e no maoísmo, apesar de alguns antecedentes históricos, como a ditadura teocrática de Calvino, o modelo inquisitorial da Contra-Reforma, a república dos santos de Cromwell ou o terrorismo jacobino. Segundo Carl J. Friedrich e Zbigniew Brzezinski, o totalitarismo teria seis grandes características: -uma ideologia oficial entendida como corpo de doutrina que abrange todos os aspectos vitais da existência humana, À qual todos os que vivem nessa sociedade deve aderir, pelo menos, passivamente
-um único partido de massas dirigido tipicamente por um homem e que é organizado hierarquicamente e de forma oligárquica, acima ou totalmente ligado à organização burocrática do governo
- a existência de um sistema de controlo policial terrorista que é dirigido não só contra inimigos declarados, mas também arbitrariamente para certas classes da população, com uma polícia secreta que utiliza a psicologia científica;
-os meios de comunicação de massa estão sob monopólio quase completo
- a existência de situação idêntica no que diz respeito aos meios armados
- controlo e direcção central de toda a economia. Mais recentemente Giovanni Sartori, veio utilizar outro modelo para a conceitualização do totalitarismo, fazendo nele imbricar as degenerescências do autoritarismo e da ditadura. Utilizando cada uma das três categorias como modelos abstractos, marcados por determinadas características, vem considerar que na realidade, os diversos regimes degenerados vão pontuando, segundo vários critérios, numa de três tipologias - totalitarismo (t), autoritarismo (a) e ditadura simples (d), conforme os critérios da ideologia, da penetração do Estado na sociedade civil, da coerção, da independência dos subgrupos dentro do Estado em causa, as políticas face a outros Estados, da arbitrariedade do poder, do centralismo do partido..  Quanto à ideologia, ela pode ser forte e totalística (t), não totalística (a) e irrelevante ou fraca (d). A penetração do Estado na sociedade civil pode ser extensiva (t), modesta (a) ou nenhuma (d). A coerção pode ser alta (t), média (a) ou média baixa (d). A independência dos subgrupos pode ser nenhuma (t), limitada a grupos políticos (a) ou permitida com excepções (d). As políticas face a outros grupos estaudais pode ser destrutiva (t), exclusivista (a) ou errática (d). A arbitrariedade pode ser ilimitada (t), dentro de limites prévios (a) ou errática (d). O centralismo do partido pode ser essencial (t), útil (a) ou mínimo ou nenhum (d). Segundo o critério da ideologia, entendida como um sistema de crenças idêntico ao de uma religião, uma interpretação substantiva do mundo ou uma simples forma mentis, a gradação passaria por um crescendo. Quanto à penetração do Estado (aparelho de poder) na sociedade civil, o totalitarismo seria aquele regime que destrói a separação entre o público e o privado. Já não estaríamos perante o L'État c'est moi, do despotismo esclarecido, mas antes naquilo que Trotski disse de Estaline: La Societé c'est moi.
Mussolini, por exemplo, apesar de ter proclamado o tudo no Estado, nada fora do Estado, não passou da retórica, dado que na Itália fascista continuaram a florescer vários nichos de autonomia da sociedade civil..
O totalitarismo assumir-se-ia sempre como uma negação de uma concepção pluralista da sociedade. Seria, pelo menos, a destruição da crença no valor do pluralismo.
Já quanto ao critério da coerção ou mobilização, Sartori refere que a capacidade de mobilização tanto pode resultar da densidade organizacional como do fervor ideológico, sublinhando que a concentração do poder (isto é, a não separação dos poderes) não pode ser confundida com a respectiva centralização, da mesma forma como um sistema monista não tem que ser monolítico.
A este respeito, se C. J. Friedrich colocava como um dos elemento definidores do totalitarismo, um sistema policial terrorista (terrorist police system), já Sartori considera que o terror é contingente num sistema totalitário, não sendo uma característica necessária, porque quando o controlo totalitário entrou na rotina, o terror tornou-se supérfluo.
Quanto ao critério da arbitrariedade, Sartori define-o como o exacto contrário da rule of law, do Estado de Direito.
Aceitando o essencial desta perspectiva, acrescentaremos que são possíveis três concepções de totalidade política e, consequentemente três modelos de totalitarismo.
No Estado fascista e, em certo sentido, no absolutismo, é o Estado, qua tale, que domina e forma a sociedade, suprimindo a liberdade desta;
No Estado soviético, surge o Estado-Partido, primeiro, com Lenine, onde temos um partido totalitário visando a reconstrução total da sociedade, depois, com Estaline, com um Estado totalitário que subordinou totalmente a sociedade, e, finalmente, com Brejnev, onde surge um Estado totalmente estagnado, dominado por um partido totalitário corrupto.
Num terceiro modelo, como foi praticado pelo nazismo, o Estado e a Sociedade já se reúnem numa unidade nova, através de uma espécie de terceira força: o povo político formando um todo, através de um movimento que transforma o Estado num simples aparelho administrativo.
Foi com o modelo fascista de Benito Mussolini, que em 1925 se assumiu o lema do nada fora do Estado, acima do Estado, contra o Estado. Tudo no Estado, dentro do Estado, ao mesmo tempo que se tentava substituir à velha tríade da revolução francesa, da liberté, égalité, fraternité, pela fascista trindade de autoridade, ordem, justiça.
O próprio Mussolini, no artigo Fascismo, publicado em 1929, e rescrito por Giovanni Gentile, na Enciclopedia Italiana, definia o respectivo Estado como stato totalitario, proclamando: pode pensar‑se que o século actual é o século da autoridade, um século de 'direita', um século fascista; e que se o século XIX foi o século do indivíduo (liberalismo significava individualismo), podemos pensar que o século actual é o século 'colectivo' e, por consequência, o século do Estado. Três anos depois, em La Dottrina del Fascismo, já considerava que para o fascista, tudo está no Estado e nada de humano e espiritual existe, e muito menos tem valor, fora do Estado. Neste sentido, o fascismo é totalitário e o Estado fascista, síntese e unidade de todos os valores, interpreta, desenvolve e potencia toda a vida do povo.  O fascismo, com efeito, sublimou o Estado, transformando‑o num fim em si mesmo. Como dizia Sergio Panunzio, um dos seus doutrinadores, tal como a matéria tende para a forma, a sociedade tende para o Estado.
Já o nacional‑socialismo alemão vai desvalorizar o ideia de Estado, considerando-o como simples aparelho (Apparat) ao serviço da comunidade do povo (Volksgemeinschaft). Como salientava Adolf Hitler em Mein Kampf, de 1924, o Estado não passa de simples forma cujo conteúdo é a raça: o Estado é um meio de atingir um fim. Deve manter, em primeiro lugar, os caracteres essenciais da raça. Segundo as palavras de Pierre Birnbaum, Hitler opôs-se à concepção hegeliana do Estado como instrumento da razão universalista ou ainda da teoria weberiana do poder racional‑legal, que se aplicam, tanto uma como a outra, muito particularmente, ao Estado prussiano fortemente burocratizado, fazendo sua uma perspectiva anti‑estatista e desejando confiar a uma elite o cuidado de realizar a união da raça. Não se estranhe, pois, que alguns teóricos nazis cheguem a considerar o mesmo Estado como mero produto do direito romano, criticando particularmente a noção de personalidade do Estado, considerada como resultante de uma concepção jurídica individualista, apenas baseada em relações meramente interpessoais.
Alfred Rosenberg, o célebre autor de Der Mythus des zwanzigsten Jahrhunderts, de 1930, por exemplo, assinalava que o Estado já não é, hoje, para nós um ídolo que se baste a si mesmo e perante o qual todos nos devemos prostrar; o Estado também não é um fim, é apenas meio para a conservação étnica. Um meio como os outros, como deveriam sê‑lo a Igreja, o Direito, a Arte, a Ciência. As formas do Estado mudam e as leis passam, mas o povo permanece. Donde resulta que a Nação é o princípio e o fim perante o qual tudo o resto deve vergar‑se.
Outros autores, como Reinhard Höhn, em Volk und Verfassung, chegam mesmo a propor que o nazismo dispense a própria noção de Estado, dado que para a construção do novo direito público alemão seriam suficientes os conceitos de povo (Volk) e de condutor (Führer).
Não obstante esta doutrina não se ter tornado dominante entre os juristas nazis, o facto é que o movimento fez sempre uma clara distinção entre o Estado-Aparelho(Staat) e o Estado‑Comunidade (Reich), desvalorizando particularmente o primeiro. Como ensina Burdeau, o Estado deixou de ser o titular do poder político e a doutrina levou ao desaparecimento do Estado como construção constitucional.
Do mesmo modo, se alterou o clássico conceito de governo, que deixou de ser um regierung, passando a entender-se führing, emanando directa e organicamente da própria comunidade. Daí o Führer ser entendido, não como órgão do Estado, mas como representante directo da nação, não como mandatário mas como o próprio poder incarnado.
O Estado Aparelho, entendido como um conjunto de meios técnicos, pessoais e materiais ao serviço de um interesse geral que ele já não determina, como assinala Georges Burdeau, passou a estar nas mãos do führer para, como assinala Höhn servir a Volksgemeinschaft, por um lado, para preencher certas funções nacionais (ordem, segurança interior, defesa nacional) e, por outro, como instrumento para a educação do povo no espírito da Volksgemeinschaft. Nestes termos, o Estado já não tem a qualidade de uma pessoa moral à qual o particular deve obediência... A base do novo pensamento jurídico é a ideia de comunidade do povo. O Estado não é senão um instrumento para realizar os fins da mesma.
Os direitos do Estado passaram, pois, a ser considerados como um mito demoliberal e a fonte de todo o poder a estar nessa vaga entidade chamada volk, marcada por uma concepção quase mística, cujo espírito se incarnava na subjectivíssima vontade do führer.
Também Hitler no Mein Kampf considerava que o objectivo do Estado reside na conservação e desenvolvimento de uma comunidade de seres vivos da mesma espécie, física e mentalmente e que os Estados que não correspondem a essa finalidade são fracassos, impondo‑se, portanto, a defesa da alma racial (Rassenseele).
Hitler refere que o fim supremo do Estado racista deve ser o de procurar a conservação dos representantes da raça primitiva, criadores da civilização, que fazem a beleza e o valor moral de uma humanidade superior. Nós, enquanto arianos, não podemos representar um Estado senão como organismo vivo que constitui um povo, organismo que não apenas assegura a existência desse povo, como ainda , desenvolvendo as suas faculdades morais e intelectuais, o faz atingir o mais alto grau de liberdade.
O Estado não tem outro papel senão o de tornar possível o livre desenvolvimento do povo, graças ao poder orgânico da sua existência.
Paradoxalmente tem uma concepção feita à imagem e à contraposição daquilo que ele considera a concepção judaica do Estado: o Estado judeu nunca foi delimitado no espaço; expandindo‑se sem limites no universo, compreende exclusivamente os membros de uma mesma raça. É por isto que este povo formou em todo o lado um Estado no Estado, até porque a religião de Moisés não é senão a doutrina de conservação da raça judaica.
Assim, Hitler também considera que o Estado é um organismo racial e não uma organização económica onde o instinto de conservação da espécie é a primeira causa da formação de comunidades humanas, pelo que acredita que nunca nenhum Estado foi fundado pela economia pacífica, mas sempre o foi pelo instinto de conservação da raça, tanto o heroísmo ariano gerando Estados marcados pelo trabalho e pela cultura, como a intriga geradora das colónias parasitas de judeus